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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O queijo e os Vermes

O queijo e o século XVI
O século XVI foi sem dúvida um período extremamente conturbado onde diversos acontecimentos desestabilizaram a ordem imposta, mudaram valores, pensamentos e até hábitos alimentares. A Reforma protestante por sua parte quebrara a grande crosta que mantinha a população sobre o pressuposto de que a vontade de Deus estava na vontade da Santa Igreja e que qualquer um que falasse em nome dela era dono da razão. Fazendo assim emergir diversas contradições culturais religiosas e políticas dentro da Europa que saia da época medieval.
            Na contra-mão por sua vez a Contra Reforma literalmente queimaria o velho mundo na defesa da antiga ordem se valendo de todos os meios possíveis desde os discursos inflamados dos seus oradores até o fortalecimento da Inquisição e do uso de torturas e da fogueira para “expulsar os  demônios” , da cristandade
            Nesse contexto ainda há o surgimento da imprensa de Gutenberg que popularizaria diversas obras levando a cultura impressa a lugares antes inimagináveis e ao convívio cotidiano de inúmeras pessoas.
            Estes três grandes momentos históricos que estão interligados dentro do processo de fortalecimento dos estados nacionais da Europa ocidental em relação ao papado, mostra o quanto foi conturbada esta época e o quanto se abalou as estruturas desta sociedade, afim de acompanhar as mudanças da forma de pensar, ser, rezar e agir.  Paralelamente os indivíduos em seu existir também foram afetados por esta onda de mudanças independente da proximidade do epicentro deste terremoto, contudo a diferença no tempo e na postura aqui também se vê correlata a esta proximidade. Isso, no entanto ainda não explica a mentalidade dessas pessoas atingidas posteriormente por este movimento.
            Nesse ponto a imprensa entra de forma discreta, porém fundamental, o grande volume de livros e obras produzidos no período do concílio de Trento e também as anteriores e posteriores a ele ficariam a disposição de um número bastante considerável de leitores que apesar da censura da inquisição podiam tomar contato com obras variadas que lhes abriam um vasto horizonte de idéias.
            Tal material contraditoriamente tinha uma grande circularidade nos seus tempos e apesar de serem em maioria apenas os homens de posse os alfabetizados, alguns outros indivíduos também tenham tido o aprendizado das letras, mesmo nas camadas menos favorecidas da sociedade e que nessa parcela da população havia também, uma certa, circularidade de livros, como vemos nos depoimentos de Menochio que muitas vezes receberá livros das mãos de outrem.
            De todo modo essas relações de troca da alta cultura representada por obras como a Divina Comédia, o De Trinitatis erroribus e Decameron e tantas outras com a cultura popular ainda presa a oralidade representaria o que no contexto que descrevemos acima?  Quais os diálogos entre as crises do alto clero e da ordem Feudal, com o homem comum das massas? E mais o que um simples moleiro da afastada Friulli representa? O que e como todos esses movimentos chegam até ele?
            Para responder essa e outras tantas perguntas que o Historiador Carlo Ginzburg nos apresenta, ninguém melhor que o próprio protagonista da história, Menochio um homem que estava em seu tempo em um patamar da sociedade entre o campo e a cidade, pois como moleiro vivia nos afazeres do moinho, moendo e produzindo os seus produtos e os dos vizinhos uma atividade tipicamente rural, mas que também tinha seus contatos com a cidade, diferente de seus vizinhos que eram pequenos produtores e que em geral estavam presos a terra indo a cidade apenas aos domingos e nos dias santos. Menochio por sua vez de quando em quando tinha que se deslocar a cidade, ora em função de sua atividade como administrador paroquial, ora para os cuidados de seu próprio negócio.
Para entender este homem, no entanto temos que nos ater entre outros pontos a sua relação com o todo o contexto em que está envolvido direta e indiretamente e em especial o da Friulli.
            A região onde Menochio morava e onde viveu quase toda sua vida fazia parte do Estado Veneziano, todavia fora um território conquistado que nunca havia se conformado totalmente com essa dominação. Desde a conquista as discordâncias entre os favoráveis e os contra Veneza dentro da Nobreza, haviam dividido a classe, portanto se articulavam em dois blocos um contrário a dominação de Veneza e outro a favor. Esses grupos em disputa constantemente manobravam as massas ao seu favor, contudo em determinado momento poderíamos dizer que o fermento foi posto além da     de ambos os partidos, o que fez que o sentimento de solidariedade de classe falasse mais alto e o combate da revolta se desse ferozmente em uma clara situação de luta de classes e não inter-classes.
            Ao ver tal situação a postura Veneziana foi audaciosa, fazendo uso de uma política bem interessante conseguiu fazer com que os camponeses canalizassem sua ira contra os nobres ao invés de irem contra todo o sistema no qual o topo estava o próprio Veneto, fazendo concessões e submetendo vários encargos a valores controlados pelo estado central, acalmou os ânimos trazendo o sentimento de que Veneza estava com os camponeses quando possivelmente o maior interesse do Estado era desarticular a subversiva Nobreza Friulliana dando alguns benefícios estratégicos ao campesinato que enfraquecia seus rivais e ainda lhe rendia o apoio da massa.
            Contudo, a redução de encargos e as benfeitorias não atingiam as terras pertencentes à Igreja e elas eram muitas, o que fazia com que a instituição que já não era bem vista, por diversas vezes representar os interesses da nobreza ou do Estado em detrimento ao da população em geral e que algumas gerações após a revolta camponesa, já na época de Menochio  havia sofrido tantos ataques com a reforma que a colocava em xeque quanto a sua postura ética, se mostrava como a maior opressora da população da região.        
            E nesse ponto Menochio não consegue aceitar a realidade em qual ele vive, como a Santa Madre Igreja poderia ser uma instituição capaz de explorar mais o povo que a própria Nobreza.
            Nesse sentido nosso moleiro busca respostas e refugio nos livros que a ele chegam através de mãos diversas sem na maioria das vezes serem escolhidos, mas que o acaso trouxera.
            Essa disseminação da fonte escrita, no entanto, se choca claramente com a forma oral de vida de Menochio que tende a absorver da leitura tanto quanto o que se absorve de uma conversa, ou seja, apenas aquilo que o ouvido da mais ênfase, aquilo que já se esperava ouvir, aquilo que se busca escutar.
            De obras como o fioretto della Bíbbia ele retirará inúmeras citações, mas por que não da própria bíblia se está seria a única lei como diria os luteranos e os anabatistas, isso se explica por dois motivos primeiro o fato de ele não ler bem o latim e segundo pelo fato de acreditar que “que a Sagrada escritura foi inventada para enganar os homens”¹, portanto o fioretto della Bibbia estava muito mais próximo dele e também lhe agradava mais sua visão altamente escolástica e até mesmo pelo fato de ter sido este livro por ele comprado e que portanto deve ter estado com ele por mais tempo e em um contato mais constante e consciente.
            A obra acima citada tem os seus méritos de influência no pensamento de Menochio, no entanto em sentido inverso, ao ler o Fioreto della Bibia, ao invés de cair na escolástica do autor que sempre apresentava várias teses para as reputá-las posteriormente, ele fez como um aluno esforçado foi buscar suas “próprias respostas” em outros autores que passaram por suas mãos por acaso sempre refletindo “as coisas maiores”, ou seja, o livro não se limitava a suas história, e isso explica um dos motivos das inúmeras citações dessa obra.
            Menochio estava longe de ser um leitor passivo ele quer dar a sua opinião. “...eu tirei da minha própria cabeça”, “falaria tanto que surpreenderia a todos” e portanto cada antítese vira tese e da mesma forma ao contrário quando sua cabeça começa a trabalhar e racionalizar o que leu, segundo sua própria experiência e segundo as experiências absorvidas através de suas leituras.
            Se valendo de um velho ditado “quem procura acha” podemos dizer que esse era Menochio sempre na procura por algo, mais o que? Deus talvez. Provavelmente não o Deus Católico, nosso Moleiro queria um Deus terreno, próximo “amar a Deus e ao próximo” “Deus está no próximo”, Deus como o ser provedor de um bem estar social.
¹ Capítulo 6 pag. 51
 
            Esse sentimento de busca pela justiça social que o atormentava passava obrigatoriamente por mudanças nos dogmas da Igreja, visto o grau de intimidade entre religião e Estado em uma época que nem se sonhava com um Estado laico, talvez apenas os anabatistas vissem tal possibilidade e por isso tenham sido perseguidos por ambos reformadores e Contra-reformadores, ainda retomando o dito antes que a Igreja a muito se punha como a maior opressora social, era ali no seio da Santa Igreja que Menochio quer começar sua “reforma” uma verdadeira mudança social, para construir a sua utopia na Terra.
            Sonho esse compartilhado por inúmeros indivíduos da Europa cristã nesse período, contudo cada um na sua individualidade e valor, nosso moleiro é um exemplo desse comportamento mais não pode ser fruto de uma generalização, pelo contrario é a busca pela especificidade de um ponto sensível da sociedade de seu tempo que vivia e não só fazia teoria, “era amigos de todos” combina bem com a sua crença “Deus está no próximo” que é igual a “amai o próximo sobre todas as coisas” sua vida é exemplo de seu pensamento, Menochio sempre quis a mudança e por isso agia conforme seu pensamento, seu erro, talvez foi ter guardado seus dizeres para pessoas erradas, não ter acreditado na massa que o circundava, “se tivesse a minha frente um príncipe ou o papa falaria”, com os seus se limitava a falar coisas que soavam como loucura e brincadeira, não procurava fazer um real processo de doutrinação de suas teorias para com os próximos, talvez aqui caiba ainda outra expressão popular de nossos dias “santo de casa não faz milagre”.
            Não a provas, no entanto que tal dizer existisse em seu tempo, mas com certeza o exemplo de Lutero era bem vivo em sua memória(tanto na oral como na escrita) falar a seus superiores e caso não lhe fosse aprovado, fugir e se valer das intrigas entre poder temporal e secular para se impor até o ponto de criar sua nova seita era algo que parecia possível , contudo tal desejo não se mostra profundamente em Menochio ele estava muito mais para um reformador no sentido literal da palavra “tendo nascido cristão quero continuar cristão e, se tivesse nascido Turco, ia querer viver como turco”², queria continuar dentro da religião que fora  a de seu pai e a de seus avós, contudo até mesmo por conta do impacto da Reforma se achava capaz de mudar toda a sociedade através das suas concepções.
² Capitulo 23 pag. 101
 
            Mais uma vez sua mentalidade e seus sentimentos se mostram extremamente presentes na sua prática social e na sua forma de enxergar o mundo. Com o sentimento de agente histórico atuante ele simplesmente não podia deixar a vida passar sem tentar fazer as suas mudanças isso reforça mais uma vez a sua prática de deformação e recodificação dos textos e nos faz entrar em um campo extremamente delicado e fundamental de toda essa história que Ginzburg nos envolve, a Cosmogonia de Menochio afinal da onde vem o queijo e os Vermes é apenas uma comparação simples? O que há de escondido atrás dessa frase?
            Menochio mesmo no segundo processo quando pela primeira vez, cita a palavra sonho no sentido de alguma revelação sobrenatural. O faz talvez mais por prudência e por medo, visto que já havia suportado o cárcere do Santo Oficio do que conscientemente, talvez como Ginzburg, levanta possa ter sido a influência do Alcorão, contudo essa não é certa. Resta a nós supor então que atrás de suas convicções esteja sua própria vivência cotidiana, ainda mais quando vemos suas palavras carregadas de metáforas, contudo esse mesmo homem em sua escrita faz uso de um procedimento totalmente diverso usando um estilo escolástico, mesmo que tanto um estilo como outro possam ter sido adotados de forma inconsciente, de qualquer forma é algo interessante a se pensar mais adiante.
Voltando a pensar na sua cosmogonia, seria subestimá-lo dizer que ela seja fruto apenas de um intercambio com outros povos que possivelmente tenham a trazido, mesmo levando em conta as proximidades com crenças citadas por Ginzburg e que Menochio possa ter tomado contato, afinal Veneza fora um centro de grande movimentação e nosso protagonista passou ao menos algumas vezes por lá.
            Essa circularidade de idéias que o autor vem nos mostrando em diversos momentos através dos contatos entre cultura erudita e popular, entre crenças pré-cristãs e as cristãs, a troca entre a cultura européia, turca, indiana entre outras, mostram a nós quantos fatores influenciam um homem e como as vezes se pode encontrar fragmentos de idéias de diversos autores em uma frase. Isso nos leva a indagar de quem é a tese dos autores lidos ou daquele que os juntou em sua cabeça?
            Deixemos Menochio falar para responder essa questão “tenho cabeça sutil,quis procurar as coisas maiores” nesse sentido e sempre buscando a mudança precisava quebrar o primeiro dogma essencial o da criação do mundo, em sua mente a idéia de algo não material não tem espaço “eu acredito que não possa se fazer nada sem matéria”, mesmo mudando alguns elementos, ele sempre insiste nesse ponto.
            Não por acaso o caos ao qual ele se refere é uma enorme massa de matéria da qual surge Deus ou Deus convive até a sua maturidade, os anjos  nascerem da naturalmente como os vermes nascem do queijo e Cristo e o Espírito Santo também sejam frutos desse Caos.
            Pontos esses que podem ser percebidos em outras obras como o Fiortto della Bibbia que fala do caos ou o eco da divina comédia, no entanto vemos o dom de Menochio em manipular as letras e fazer com que sua teoria se aproxime da prática, como diria Marc Bloch deve se falar de modo que estudantes e doutos o compreenda, podemos supor que esse também era o seu objetivo, mesmo que inconscientemente, portanto simplificava para se fazer entender pelas massas, através de analogias e metáforas diversas, assim como aos senhores da Igreja escrevia com uma retórica digna da escolástica, contudo como fruto do seu tempo e do impacto das letras ele acabara por inconscientemente dividir essas atitudes em linguagens, oral e escrita, sendo que ao invés de dividir pelo grupo humano ele próprio foi dividido escrevendo de um jeito e falando de outro, como vemos em todo o processo o uso incessante de metáforas e nas cartas a retórica.
            Voltando ainda a sua teoria ela apenas começa no caos, com grande inteligência ao afirmar que Deus era matéria não só Menochio quebrara um dogma como abria caminho para a derrubada de tantos outros. O próximo passo era tirar Deus do céu e colocá-lo na terra. Se Deus era matéria ele deveria estar em algum lugar, mas se nunca ninguém o tinha visto isto se tornava contraditório, portanto nosso Moleiro irá dizer que “Deus está em tudo” e a racionalmente o que está em todas as coisas é o ar “Deus é o ar””Deus não passa de um sopro”, alias se Deus esta em tudo não preciso se ir até a igreja para ter parte com ele “se os homens soubessem as penitencias poderiam se confessar a uma árvore”, nesse sentido a forma mais racional de se chegar a Deus seria amando o próximo, visto que ele poderia transmitir-lhe Deus da mesma forma que você poderia fazer o mesmo a essa pessoa.
            Esse foi, o nosso moleiro, uma só pessoa com inúmeras faces que as vezes se contradizem, mas que sempre estão na busca de um mesmo ideal, uma vida cotidiana mais humana e fraterna. Talvez a grande lição de Menochio a nós hoje seja, portanto viver nossas teorias na prática, acreditar que temos capacidade de mudar um sistema, falar a todos sem distinções, acreditar naqueles que sejam mais fracos ou menos informados, mostrar que um verdadeiro processo revolucionário vem tanto de cima, como de baixo, que a sociedade mesmo dividida nunca a podemos separar em caixinhas vivemos em círculos diferentes, mas que tem sempre suas intersecções, portanto não se pode desprezar nenhuma parte de uma sociedade qualquer.
            Além disso, Ginzburg nos mostra que toda história é valida, depende da forma como é feita a abordagem, uma história no âmbito micro(história de um personagem especifico, por exemplo), pode tornar-se macro, transcendente, cabe apenas que nós nos atentemos em nosso trabalho, e possamos cumprir o dever de fazer uma história que atente as realidades impostas pelo dia-a-dia, na forma de critica ou elogio, desde que não seja limitadora, mas que acrescente ao debate.

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